As Dores do Mundo


Assinalamos recentemente a passagem de dez anos desde os eventos de onze de Setembro de 2001. Quero que as minhas primeiras palavras ao começar este artigo sejam, para que não possa ser mal interpretado no que escreverei de seguida, de pesar profundo pelas vidas perdidas e de condolências sinceras aos que as amavam. Entretanto, este artigo não é exclusivamente uma expressão dos meus pêsames aos que sofreram na tragédia. Tenho que manifestar também o meu assombro por, apesar de todas as vezes que se falou no onze de Setembro desde então, nunca ter, em todos estes anos, ouvido, que me recorde, uma discussão real sobre as razões que levaram aos atentados. Creio que isto acontece devido à manipulação da imprensa e às pessoas atribuírem os ataques aos actos psicóticos de fundamentalistas religiosos e maníacos homicidas. Não há duvidas que o fundamentalismo religioso desempenha um papel importante. No entanto, se nos dermos ao trabalho de ouvir integralmente um dos famosos discursos de OsamaBin Laden, verificamos que ele faz apenas duas referências às suas crenças religiosas, uma no início, que é a longa oração que faz antes de começar o discurso, e outra no fim, afirmando a sua convicção na lei de Alá como a melhor das leis e como o melhor caminho para o povo americano. No resto do discurso, em vez de Alá e de devaneios lunáticos homicidas, fala sobre os ataques americanos à independência dos povos do médio oriente, expressa a sua admiração por Kennedy e analisa a corrupção do sistema politico americano. E, é curioso, quando vejo na televisão as imagens de muçulmanos a pegar fogo à bandeira americana e a pontapear a fotografia do presidente dos Estados Unidos, nunca ouço as palavras "cristão" ou “infiél”. Ouço sempre "assassino". Isso leva-nos, ou devia levar-nos, forçosamente, a pensar nas causas de todo o ódio. E deviamo-nos lembrar, porque é importante que nos lembremos, de coisas que são do conhecimento público relativamente à intervenção americana na política do médio oriente, tais como:

- Para debilitar a União Soviética, na altura da guerra fria, os EUA tentaram incitar uma guerra entre esta e o Afeganistão. Para esse fim, forneceram armas aos extremistas da facção de Hekmatyar, o que tornou impossível a formação de um governo estável na região.

- Os EUA apoiaram Israel na chacina de libaneses a ponto de impedir as Nações Unidas de forçar um cessar fogo israelita, embora o Líbano contasse já milhares de mortos. Depois, com o apoio dos EUA, um regime não democrático tomou conta do poder no Líbano. Quando os populares se revoltaram, os EUA bombardearam aldeias e vários pontos que consideraram focos da revolta.

- No Irão, em 1953, os EUA organizaram um golpe para tirar do poder o então primeiro ministro Mohammad Mosaddegh, que tinha sido eleito democraticamente, e colocaram em seu lugar o Xá, um ditador tirânico. Este Xá servia-se de uma policia de estado treinada, ela própria, pelos EUA.

- Quando o Iraque tentou invadir o Kuwait, as forças americanas da Guerra do Golfo provocaram estragos e massacres tão desproporcionados e excessivos, inclusivamente civis, que mesmo os oponentes de Saddam Hussein tomaram posição contra os EUA.

- Os Estados Unidos apoiaram o Iraque e Saddam Hussein por ocasião da invasão do Irão, impedindo as Nações Unidas de actuarem e fornecendo Antrax e armas químicas ao Iraque.

- Os EUA forneceram armas a várias nações islâmicas em conflito, muitas vezes a ambas as partes dos conflitos, alimentando assim as guerras.

- Os EUA apoiaram e realizaram transacções comerciais com governos autocráticos e tirânicos que oprimiam os povos no médio oriente

- No Sudão, os EUA bombardearam uma fábrica de produtos médicos que fornecia cerca de metade da produção nacional de medicamentos sudanesa. Milhares de pessoas morreram devido à escassez de coisas como vacinas e antibióticos. Os Estados Unidos alegaram, acredita-se que falsamente, que se tratava de uma fábrica de produtos químicos. Não existe certeza absoluta se era ou não porque os Estados Unidos impediram a investigação das Nações Unidas
- Os EUA incitaram e encorajaram conflitos entre estados islâmicos, para evitar que estes países se pudessem vir a unir

- Os EUA apoiaram e treinaram a Al-Qaeda quando esta servia o seu propósito de combater a União Soviética. Foi quando os Estados Unidos tomaram o lugar destes últimos como força invasora que principiou o conflito.

- As forças militares americanas classificadas como ajuda internacional nunca trouxeram até à data melhorias significativas nas regiões que supostamente estariam a ajudar.

- Na primeira metade do século XX, eram os países europeus a colonizar os países islâmicos. Esta colonização originou repercussões até aos dias de hoje. No entanto, nesta altura, os povos do médio oriente não tinham nada contra os EUA, porque a opressão vinha da Europa.

- Em suma, como diz Gwynne Dyer: “O ocidente criou o médio oriente actual, dos seus regimes podres às suas linhas fronteiriças ridículas, e fê-lo num completo desrespeito pelos desejos das populações locais. É realmente um problema que a maioria dos governos Àrabes sejam autocracias corruptas que geram o ódio e o desespero nos seus próprios cidadãos, o que por sua vez alimenta o terrorismo contra o ocidente, mas foi o ocidente que criou o problema.”

Estes são apenas alguns dos factos conhecidos publicamente, aos quais haveria a acrescentar ainda outros, e também, concerteza, coisas que não são conhecidas e que ocorreram e ocorrem na completa penumbra. Ou seja, o que é surpreendente não é que o onze de Setembro tenha acontecido. A mim o que me admira é como não aconteceram mais. Sinceramente, não sei quantas destas coisas era preciso fazerem-me até eu me tornar terrorista. Não sei quantas vezes era preciso vir uma potência estrangeira depôr um politico que eu e os outros cidadãos tivéssemos elegido para pôr no seu lugar um ditador sanguinário, ou quantos filhos meus era preciso matarem por motivos económicos, até eu me tornar insensível aos civis inocentes e fazer o que pudesse.
E, portanto, eu sei do extremismo religioso. Mas, como dizia Umberto Eco no Nome da Rosa, quer se aja em nome do céu de Alá ou em nome do paraíso de Deus, estas coisas acontecem porque existe o inferno aqui na Terra. Retratam os radicais islâmicos a encomendarem a alma a Alá antes de se matarem, como que a sublinharem a raiz do problema. Mas quantos de nós, se nos fossemos suicidar, não encomendaríamos a alma ao nosso Deus, sem ser preciso sermos fanáticos religiosos? Sim, toda a gente sabe dos extremistas religiosos. Mas ouçam, eles nunca andaram a chatear ninguém até lhes terem sido dados motivos para o serem.
Quero concluir como comecei, manifestando os meus sentimentos pelas vitimas da tragédia horrível do onze de Setembro. O meu coração chora por eles. Mas chora também pelos milhares incontáveis de muçulmanos mortos pelos ataques terroristas do governo americano, embora estes últimos não costumem ser chamados assim.
De forma que, quando as imagens na televisão mostram as ruínas do World Trade Center e os cemitérios de vitimas inumeráveis, para me relembrarem da malvadez e monstruosidade dos terroristas, a mim relembram-me uma coisa diferente. Que só há, realmente, um traseiro em que a aguarrás dói: o nosso.


Hermano Moura

Guia do explorador intergaláctico para a cultura do planeta Terra:

Estimado Extra-Terrestre,

Se está a ler estas linhas é porque a espécie, à qual pertenço sem grande entusiasmo, que outrora habitou este planeta, se encontra extinta, como era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, viesse a acontecer, tal como aconteceu a todas as que existiram, a todas as que existem no momento em que escrevo, e a todas as que existirão, assim nos ensina a ciência. Consciente que chegaria o dia em que exploradores de outros planetas viriam a descobrir as ruínas da nossa civilização, dediquei-me a escrever-lhe estas linhas, não em papel, que tão facilmente se perde, se queima, se gasta e se destrói, mas em minúsculos pixels e bits de informação, que resistem obstinadamente à intempérie e ao esquecimento, como o comprova o desespero de tantas celebridades e adolescentes sem bom senso. Portanto, deixo esta mensagem para si, caro alienígena, que chegou ao nosso pobre velho planeta azul, tão pequenino que por pouco não o via, mais especificamente a esta faixa de costa marítima a que um dia chamámos Portugal, tão estreita que por pouco a sua nave espacial não aterrava no oceano, para que, quando vier a desenterrar as nossas cidades, desempoeirar os vestígios do nosso quotidiano, investigar os cadáveres fossilizados das nossas paixões, possa entender um pouco melhor a nossa cultura e as nossas artes.

Se fizer algumas escavações perto deste local onde lhe escrevo, na outra margem do rio que provavelmente já não existe, encontrará uma grande estrutura de metal, que não é um símbolo fálico destinado aos nossos rituais ancestrais de acasalamento e fertilidade, mas aquilo que designamos por antena emissora de televisão. Valerá a pena desenterrar as gravações que conseguir, para ficar com uma ideia das coisas que gostamos de ver, das quais passo a fazer um resumo:
- Telejornais: uma outra forma de telenovelas, estes são programas que outrora tiveram o objectivo de informar o público.
- Reality Shows: estes são programas em que nos é dada a oportunidade de observar pessoas sem carisma nas suas vidas quotidianas e conversas banais. Parece-me que se atingiu recentemente um novo patamar com este tipo de programas, quando surgiu um que consiste num concurso de culinária, inteiramente baseado no teste da prova dos alimentos feitos pelos concorrentes, embora a nossa tecnologia, infelizmente, ainda não permita a transmissão da sensação de paladar pela televisão. Ou seja, é um pouco como ver um programa sobre morcegos a avaliarem musica feita unicamente com ultra-sons.
- Programas apresentados pela Bárbara Guimarães: a Bárbara é dois dos maiores vultos da nossa televisão.
- Televendas e concursos tipo "Quem Quer Ganha": alguns dos programas mais interessantes e eruditos da nossa programação, aconselho o seu visionamento atento. 

Também não muito longe daqui poderá desenterrar as ruínas da nossa biblioteca municipal. Na nossa literatura, produziu-se um fenómeno curioso quando os adultos passaram de incentivar as crianças a ler a roubarem-lhes os livros para os lerem eles. Afinal, quando eles diziam que as crianças deviam ler mais, o que queriam mesmo era que houvesse mais livros para crianças publicados. Isto não é nenhuma crítica aos livros em si, até porque adorei os livros da série Harry Potter, e não posso opinar sobre os livros Twilight porque nunca os li, mas não deixa de ser um fenómeno interessante. Claro que também há literatura para adultos, como a Margarida Rebelo Pinto, mas, uma vez, li algumas páginas dela, e depois enfiei uma faca no fígado, porque, se vou ser torturado daquela maneira, prefiro fazê-lo como um homem a sério.

Infelizmente, a pintura é um tema sobre o qual não estou minimamente informado e não me interesso muito, pelo que não posso adiantar grande coisa ao meu estimado explorador interplanetário. No entanto, por aquilo que apanho do que me rodeia, creio que não erro muito se disser que os pintores temem de tal forma a beleza clássica, e estão tão obcecados com serem vanguardistas, que há anos que se entretêm a pintar as coisas mais destemidas e estranhas que conseguem imaginar, para poderem ser intelectuais e modernos. Creio que o público em geral de não-entendidos tem, como eu, a sensação, talvez não muito injusta, de que, se Miguel Ângelo ressuscitasse, e pintasse alguma coisa, seria ridicularizado e humilhado pelos críticos e pelos outros pintores até se aninhar em posição fetal debaixo de uma cama.

Na música também se produziu esse fenómeno, por exemplo em peças para aparelhos de rádio. A ideia destes músicos é que, se fizerem algo que ninguém consiga compreender, vão ser génios incompreendidos. Contudo, na música, isto adquiriu uma expressão menor, e o fenómeno mais relevante é precisamente o oposto. Boa parte da musica actual, longe de ser feita para pessoas com a pretensão de serem intelectuais, parece antes feita para quem quer parecer-se com alguém que sofreu uma lobotomia. Aliás, em muitos casos, não é sequer música, porque não é feita por músicos. É feita por produtores. É fácil de fazer, e vende imensamente. Seria como os hamburgers, se estes fossem feitos especificamente para pessoas às quais tivessem retirado cirugicamente o cérebro e posto em lugar dele o cérebro de um chimpanzé. E, por azar, se tratasse de um chimpanzé não muito inteligente.

Falta-me falar sobre o cinema. Mas aquilo que teria a dizer sobre os filmes é tão semelhante ao que já disse noutros pontos deste artigo, que não sei se vale a pena. A máquina de fazer dinheiro estende os tentáculos e apodera-se de tudo. O que acontece é que, entre o dinheiro e a arte, o dinheiro é claramente a via mais directa para ter sexo com prostitutas minimamente aceitáveis. E o dinheiro, ao contrário da arte, constrói impérios, e está do lado de quem tem o poder. Assim, não deveria ser surpresa, por exemplo, que sejam os produtores a criarem, em boa parte, os filmes, tal como acontece com a música. Se um aspirante a escritor escrever um guião genial e o enviar para Hollywood, e tiver a sorte dos produtores ficarem tão fascinados com a qualidade do trabalho que decidam contratá-lo, aquilo que acontece é arranjarem-lhe um lugar a escrever as partes de diálogo do filme que eles querem fazer, que está estudado para vender o mais possível, mas não necessariamente para não ser intragável. Talvez transpareça demasiadamente destas linhas que o papel dos produtores e corporações na minha concepção mental do mundo é semelhante à que os judeus tinham na concepção do Hitler. Talvez eu esteja a ser demasiado agressivo. Mas eles também podiam ajudar e resolverem parar de serem seres sub-humanos e sem alma que conspurcam tudo aquilo em que tocam. Os produtores, admitirei, são importantes e, sem eles, talvez estivessemos a chafurdar num tipo de lama diferente mas não forçosamente melhor. Só que devia haver um certo equilíbrio nas coisas. E sempre que tenho um vislumbre do poder que eles têm, da influência doentia que têm sobre toda a nossa cultura, e da confiança ilimitada que depositam na bronquice do cidadão comum, sinto que devíamos lutar conforme pudermos contra o estado actual das coisas.

Não me alongo mais. Vou despachar-me porque quero ir ouvir um cd novo, que comprei. Na publicidade, o cantor aparece rodeado de mulheres em bikini, e disseram-me que ganhou um concurso de televisão, portanto, tenho a certeza que a música só pode ser fantástica. E, a seguir, vou ao cinema ver um filme. Enfim, caro viajante de outro planeta, é este o inventário da nossa civilização que lhe deixo para que possa ser feita justiça à nossa memória quando da nossa existência apenas restar cinza e pó e nada, e, porventura, uma lágrima a escorrer na face da lua que, olhando tristemente um mundo sem humanos, talvez pense de si para si, à semelhança das mães que vêem os filhos irem presos, que nós, lá no fundo, não éramos maus rapazes.



Hermano Moura

Carta Aberta

Eu e o meu marido tivemos, no ano passado, a nossa primeira criança. No entanto, a nossa alegria foi ensombrada pela tragédia, porque o nosso menino nasceu com uma doença genética terrível. Os médicos diagnosticaram-no com a síndrome de AFUBR. Como o tratamento requer cirugias complicadas e caras, mas nós somos uma família pobre e sem dinheiro suficiente, a AOL comprometeu-se a doar um Euro para os tratamentos por cada vez que este e-mail for reenviado. É evidente que a AOL podia, se queria mesmo ajudar, simplesmente pagar as despesas médicas necessárias, mas preferiram este método estranho, rebuscado, irracional e completamente aleatório. E preferiram isto, vá-se lá saber porquê, mesmo apesar do facto de que fazer o tracking de um e-mail a esta escala, através de milhares de reenvios, é não só tecnologica e logisticamente impossivel, mas provavelmente ilegal. O Bill Gates também aproveitou, e prometeu que vai descobrir a identidade e morada de todas as pessoas que reenviarem este e-mail, e enviar a todas dinheiro, só porque tá tolinho da cabeça. Por favor, ajudem-nos a nós e ao nosso bébé e enviem este e-mail para todas as pessoas que conhecerem. Claro que podem não enviar, mas, lamento dizer-vos, acabarão no inferno, a serem consumidos eternamente pelas chamas incandescentes da ira do Senhor. Porque que tipo de monstro é que não tenta ajudar uma criança quando isso não custa nada a não ser uns segundos do vosso tempo, hum? Portanto, na via das dúvidas, mais vale não arriscar e fazer papel de parvo.


Hermano Moura

Memorando FMI/BCE/UE/PORTUGAL

"Lasciate ogni esperanza, voi ch'entrate."
  Deixai toda esperança, vós que entrais.
                                    Inferno de Dante Aligheri. 

Medidas do Memorando de entendimento FMI/BCE/UE/Portugal- act.

 

 

O Mundo da Música

Como me envolvo frequentemente em conversas sobre música com amigos, pareceu-me que seria um projecto interessante tentar resumir por escrito alguns dos pontos de vista que habitualmente me esforço por defender, tanto mais quanto creio não me ter, em várias ocasiões, explicado devidamente, e, portanto, espero, agora, com a caneta, ou deveria dizer o teclado, na mão, e mais tempo para encontrar as palavras adequadas, conseguir expressar-me com maior clareza. Este artigo põe-me um desafio, antes de mais, porque a minha confessa e vasta ignorância, aliada como sempre está ao demónio da presunção, tende a tornar-me arrogante. Isto acontece porque, como já ensinava o antigo filósofo, o ignorante nunca sabe o suficiente para se aperceber de que é ignorante. Como eu sou, certamente, uma destas pessoas que são demasiado burras para se aperceberem que são burras e têm a impressão de que são inteligentes, esforçar-me-ei para não parecer pretensioso. Entretanto, aquilo de que pretendo falar tem, possivelmente, muito de abstracto e de subjectivo, pelo que a minha opinião talvez seja tão válida quanto qualquer outra. Este artigo é sobre a música actual, e, nele, vou usar muitas vezes a expressão música pop. Mas convém esclarecer que a uso muito imprecisamente, à falta de melhor. Ou seja, apesar de usar a palavra pop, creio que o que digo se aplica à maioria do vasto conjunto de estilos de música actualmente populares, como o rock e o folk. Gostava de começar por expôr uma reflexão que há alguns dias, já não sei a que propósito, me surgiu. Aquilo que me ocorreu foi a idéia de que existe de um paralelo muito nítido entre a música pop e a chamada música erudita. Esse paralelo baseia-se nalguns pontos muito específicos. Da mesma forma que, na música erudita, não há, normalmente, uma distinção entre composição e arranjo, já que da própria composição fazem parte todas as coisas que, noutros tipos de música, se consideram parte do arranjo ou da interpretação, na pop também há esse mesmo esbatimento da distinção entre composição e arranjo ou produção. Regra geral, a primeira versão, ou a mais conhecida, de uma canção, é considerada, por assim dizer, a verdadeira versão, a original. Quando alguém se refere a uma determinada canção pop actual, normalmente não se refere apenas à canção em si, mas também a uma específica interpretação, a um arranjo. Se eu falar da Norwegian Wood, toda a gente entende que estou a referir-me à conhecida gravação dos Beatles, embora entretanto tenham sido gravadas muitas outras versões. As canções da música pop ficam, portanto, permanentemente associadas a uma forma específica de as tocar. E convém também lembrar que, usualmente, o próprio grupo que escreveu uma canção, sempre que a toca, toca-a da mesma forma. Tudo isto quer dizer que a canção tende a deixar de ser vista como material a ser interpretado e passa a ser vista mais como uma composição, um resultado final a ser executado, como na música clássica. A consequência é existir na pop, tal como na música erudita, uma desvalorização do papel do intérprete. Isso traduz-se no uso da palavra inglesa cover. Não creio que seja costume ouvir dizer, por exemplo, a um músico de jazz, que vai fazer uma cover da Summertime. Ele diz simplesmente que vai tocar a Summertime. Ele fala assim porque vê a Summertime como uma canção no papel, material a ser interpretado, e vê-se a ele próprio como um intérprete, e tocá-la é o trabalho dele. Mas, no contexto da música pop, ouvimos dizer muitas vezes que a banda tal fez uma cover de certa música. E ouvimos dizer isso porque, na música pop, esse reencontro do papel do intérprete é tão pouco habitual que até temos que falar estrangeiro e tudo. Convém referir também que a maioria das versões que eu ouço que grupos pop fazem de canções de outros grupos são tão desinspiradas e desprovidas de interesse que não se compreende porque raio as fizeram. Voltando ao paralelo entre música pop e música erudita, creio que ele pode ser estabelecido em vários outros pontos que não é necessário, para aquilo que diz respeito a este artigo, estar a descrever. Parece-me que são dois tipos de música de certa forma semelhantes, não na prática, mas no espírito. Mas nem em tudo. E uma destas excepções, uma das coisas em que não são nada semelhantes, é que a pop se orienta por aquilo que tem sido chamado o intuito comercial, enquanto a tradição da música erudita segue o seu caminho radicalmente oposto. E nada tenho a dizer contra a pop nesse sentido. Na verdade, parece-me que há tanta gente a tentar vanguardismos sem sentido e a inovação pela pura inovação que haver quem tenha a intenção oposta será, se não saudável, pelo menos não mais criticável. O meu problema com a pop também não é a quantidade de canções idiotas e música horrivel. Isto também me parece relativamente normal e não se trata sequer de um fenómeno específico da música. Provavelmente, o número de vendas das revistas côr de rosa também ultrapassa Saramago. O meu problema é que se formou à volta da música pop uma cultura que só posso classificar como um elitismo completamente paradoxal. Vou usar o exemplo dos cantores para ilustrar o que quero dizer. Os cantores são, geralmente, apreciados, na pop, por referência exclusiva a algumas qualidades técnicas, como a capacidade de berrar notas agudas, um vibrato mais ou menos habilidoso, o uso de ornamentação melismática, que se pretende soulful mas que, na maioria dos casos, é simplesmente pirosa, e por aí fora. Estas coisas são apreciadas pelos fãs porque eles apercebem-se que, se tentarem fazer o mesmo, não conseguem. Mas coisas como a colocação ritmica, a expressividade, a originalidade, a criatividade, todas essas coisas passam-lhes ao lado. Suponho que, com este critério, a Billie Holiday, que deve ter sido a maior cantora do século XX, seja considerada a pior cantora do mundo. A pop, no seu melhor, deu-nos alguns dos melhores compositores de canções, letristas, cantores, arranjadores e músicos dos mais variados tipos de todos os tempos. Mas assistimos, na maior parte das vezes, ao que este estilo tem de pior. E sinto, embora não tenha a certeza até que ponto este poderá ser um sentimento idiota, que o que este estilo tinha de pior há algumas décadas atrás não era tão mau quanto o que tem de pior agora, porque pelo menos soava tudo mais genuino. Para além de que a música era, frequentemente, mais um grito político e de revolta cultural que puramente música. Descubro muitas vezes, mesmo nas coisas más da música desses tempos, um certo encanto de artesanato. As coisas más de hoje soam-me só a decadência. Isto não é nenhum arroubo de nostalgia, até porque não vivi nessa altura, mas é um prelúdio antes de lançar um apelo que se aplica à esmagadora maioria dos fãs da pop. Esse apelo é que deixem de ser velhinhos. A música pop é, quase sempre, a coisa mais conservadora que é possível conceber. É um mundo de melodias simples, de ritmos comuns. Não vou empregar o lugar comum e falar em sucessões básicas de acordes porque, na verdade, creio que é um estereótipo injusto, e que a pop tende a ser bem mais interessante harmonicamente que noutros aspectos. Não me entendam mal, não é que alguma coisa, só por ser conservadora, tenha algum problema. Mas, quando vejo quase tudo o que é novo a nascer já gasto e decrépito, tenho que chegar à conclusão que falta algum espírito de aventura. E, para concluir, tenho que pedir para não defenderem o indefensável. Sobretudo os criticos e outras pessoas que têm a obrigação de saberem do que estão a falar. Tentem vender o que quiserem mas não façam de conta, com o argumento de que nas artes tudo é muito subjectivo, que clichês, coisas banais, e coisas simplesmente idiotas, não o são. O mau gosto é perdoável. Eu, se calhar, também tenho mau gosto, sei lá. Mas alguns tipos de técnicas sofistas são muito mais difíceis de engolir. Estas são algumas opiniões que, a mim, me parecem bastante pacíficas e razoáveis. Como, no entanto, encontro muitas vezes desacordo entre amigos que mas ouvem, pensei que poderiam ser um tema válido para postar neste blog e pôr à vossa consideração.


Hermano Moura

A cultura, a nação, Portugal.

a propósito do artigo no jornal Público
"Se a execução orçamental revelar necessidade de mais medidas. Sócrates admite mais austeridade para atingir défice de 4,6% este ano."


Nada disto é normal. Já não é normal há muito tempo. Não são submarinos, não são políticas de austeridade fruto da dita e tantas vezes aclamada crise financeira, não é a justiça que agora não funciona dentro dos tempos previstos para justificar o seu próprio conceito, não é a GNR que deveria ou não arrombar a porta para ir de encontro ao idoso, não é o indivíduo no cargo x, não é a empresa que ganha o trabalho y sem ir a concurso. A questão de fundo somos "nós", que a partir de 74 até aos dias de hoje, pensamos e contribuímos na organização quotidiana deste país, desta sociedade, a forma como intervimos e nos preparamos enquanto pessoas, como nos comportamos no dia-a-dia, o que permitimos ou não bem à frente dos nossos olhos e nada fazemos. Caros concidadãos, os apelos, o lamento, a crítica escrita ou oral num grupo de amigos, a criação de movimentos on-line, a frustração num primeiro estágio, apesar de fortes indicadores da saúde do país e que supostamente levaria qualquer governo ou elite social a meditar sobre o que pretende da sua nação e cultura e aí descer à plateia do teatro da vida, já não chegam. Mas, se me permitem, este é o meu lamento.

Encontrar Portugal lá fora


Os meus agradecimentos ao meu amigo Tó por me ter convidado a contribuir para o "Encontrar Portugal".

Permitam-me principiar por explicar o tema deste artigo. Há pouco tempo, fiz uma descoberta incrível. Um universo que poderia ser classificado como uma dimensão paralela se esse apartamento relativamente à quotaneidade mundana não pudesse fazer levantar a suspeita de prodígios menos milagrosos. Estou a falar de filmes indianos de porrada. Imediatamente, comecei a venerar como o meu novo herói o mítico Rajini Kanth, figura que coloco na minha escala pessoal de ídolos logo acima de Zézé Camarinha e abaixo unicamente de Chuck Norris. E, tal como o Rajini, as outras grandes estrelas do cinema de acção indiano, que, ainda que, para mim, não possam ser equiparadas a Rajini, são perfeitamente capazes de capturar um rinoceronte com as mãos desarmadas e fazer dele um guisado. Ou seja, decidi abordar este artigo de forma oposta à proposta pela frase "Ir para fora cá dentro". O meu artigo tem a ver com "Encontrar Portugal lá fora". Na impossibilidade humana de nos encararmos de frente, é só olhando para fora que nos podemos tentar ver. Quando éramos crianças, ríamos com as imagens da Casa dos Espelhos, que nos devolvem um nosso reflexo em que estamos muito gordos, ou muito magros, ou muito esticados, ou muito encolhidos. Depois, aprendemos que mesmo o espelho lá de casa nos mostra a nossa imagem invertida e, portanto, que deviamos parar de rir. Porque o facto é que somos muito gordos, e muito magros, e esticados, e encolhidos, só não sabemos isso porque estamos habituados a ver a nossa imagem apenas invertida. E tenho a sensação nítida que, quando o grande Rajini Kanth sorri para a câmera, está a sorrir para mim e para as pessoas que conheço todos os dias. Porque, quando vejo os filmes do Rajini Kanth, e depois ouço falar de um país onde os "Malucos do Riso" são um sucesso de audiências e são considerados a maior jóia da coroa da comédia nacional tenho que chegar à conclusão que estamos a falar do mesmo sítio, certo? Certíssimo. Vieram ambos exactamente do mesmo sítio. Deixo, abaixo, uma selecção de alguns dos melhores momentos de acção do cinema indiano.

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Hermano Moura