O Acordo


Sou especialista em palavrões. Não nas subtilezas da sua ciência linguística e complexidades da sua etimologia, que ascendem aos pináculos do saber erudito, mas realmente em dizê-los. Sei acentuá-los e decliná-los conforme a circunstância, o tom de tristeza incrédula ou resignada para os funerais, a cólera para os jogos de futebol, e todas as variantes e gradientes intermédios ou improváveis a que a ocasião obrigue. E encontro sempre o palavrão mais adequado. Sinto-me mesmo, em virtude disso, portador de um certo saber cultural de valor incalculável, ainda que de reputação duvidosa, na medida em que não há nada tão culturalmente único e verdadeiramente característico como a forma de cada cultura usar os seus palavrões, assim se vê a confirmação da célebre teoria do senhor Sapir e do senhor Whorf. Não se trata de ser mal-educado. Pelo contrário, tenho é educação suficiente para poupar os outros a discursos escusados, e, porventura, insuficientes, quando posso resumi-los a uma ou duas palavras que me escorregam pela língua quase sem pousar e dizem tudo. E tenho, também, educação que chegue para estar mais preocupado com o que digo que com as palavras que uso. No entanto, há alguns broncos que me acusam, por vezes, de não ter noção da civilidade e das circunstâncias, em vez de me perguntarem porque não me conformo a elas. Portanto, tenho deixado de dizer palavrões e limito-me, agora, ao aceno silencioso, ao encolher de ombros e a arquear as sobrancelhas sem proferir palavra. Ora, um destes assuntos que me suscita o uso colorido da lingua é o famoso novo Acordo Ortográfico, com o qual tenho tido que lidar um pouco na minha área de estudos.  Eu não quero parecer um reaccionário, e não se trata de resistência à mudança.  Também não se trata de patriotismo. Podem queimar a bandeira nacional à vontade, que eu não me aborreço, porque a bandeira não me serve para nada. Mas a língua uso-a todos os dias.  E gosto tanto dela e sinto-a tanto como minha que, quando a alteram, é como se me reescrevessem um pedacinho da alma sem me pedirem opinião. De forma que não vos sei dizer o que penso sobre o assunto, mas posso dizer-vos como me sinto. Sinto-me incomodado e tenho mesmo vontade de dizer um palavrão, mas, como expliquei, agora já não digo palavrões. Para além de não saber se os devo dizer com as consoantes mudas que deveras sinto. De forma que, se me virem por aí, com ar resignado, sem dizer nada, já sabem o que quero dizer.

Hermano Moura