O Mundo da Música

Como me envolvo frequentemente em conversas sobre música com amigos, pareceu-me que seria um projecto interessante tentar resumir por escrito alguns dos pontos de vista que habitualmente me esforço por defender, tanto mais quanto creio não me ter, em várias ocasiões, explicado devidamente, e, portanto, espero, agora, com a caneta, ou deveria dizer o teclado, na mão, e mais tempo para encontrar as palavras adequadas, conseguir expressar-me com maior clareza. Este artigo põe-me um desafio, antes de mais, porque a minha confessa e vasta ignorância, aliada como sempre está ao demónio da presunção, tende a tornar-me arrogante. Isto acontece porque, como já ensinava o antigo filósofo, o ignorante nunca sabe o suficiente para se aperceber de que é ignorante. Como eu sou, certamente, uma destas pessoas que são demasiado burras para se aperceberem que são burras e têm a impressão de que são inteligentes, esforçar-me-ei para não parecer pretensioso. Entretanto, aquilo de que pretendo falar tem, possivelmente, muito de abstracto e de subjectivo, pelo que a minha opinião talvez seja tão válida quanto qualquer outra. Este artigo é sobre a música actual, e, nele, vou usar muitas vezes a expressão música pop. Mas convém esclarecer que a uso muito imprecisamente, à falta de melhor. Ou seja, apesar de usar a palavra pop, creio que o que digo se aplica à maioria do vasto conjunto de estilos de música actualmente populares, como o rock e o folk. Gostava de começar por expôr uma reflexão que há alguns dias, já não sei a que propósito, me surgiu. Aquilo que me ocorreu foi a idéia de que existe de um paralelo muito nítido entre a música pop e a chamada música erudita. Esse paralelo baseia-se nalguns pontos muito específicos. Da mesma forma que, na música erudita, não há, normalmente, uma distinção entre composição e arranjo, já que da própria composição fazem parte todas as coisas que, noutros tipos de música, se consideram parte do arranjo ou da interpretação, na pop também há esse mesmo esbatimento da distinção entre composição e arranjo ou produção. Regra geral, a primeira versão, ou a mais conhecida, de uma canção, é considerada, por assim dizer, a verdadeira versão, a original. Quando alguém se refere a uma determinada canção pop actual, normalmente não se refere apenas à canção em si, mas também a uma específica interpretação, a um arranjo. Se eu falar da Norwegian Wood, toda a gente entende que estou a referir-me à conhecida gravação dos Beatles, embora entretanto tenham sido gravadas muitas outras versões. As canções da música pop ficam, portanto, permanentemente associadas a uma forma específica de as tocar. E convém também lembrar que, usualmente, o próprio grupo que escreveu uma canção, sempre que a toca, toca-a da mesma forma. Tudo isto quer dizer que a canção tende a deixar de ser vista como material a ser interpretado e passa a ser vista mais como uma composição, um resultado final a ser executado, como na música clássica. A consequência é existir na pop, tal como na música erudita, uma desvalorização do papel do intérprete. Isso traduz-se no uso da palavra inglesa cover. Não creio que seja costume ouvir dizer, por exemplo, a um músico de jazz, que vai fazer uma cover da Summertime. Ele diz simplesmente que vai tocar a Summertime. Ele fala assim porque vê a Summertime como uma canção no papel, material a ser interpretado, e vê-se a ele próprio como um intérprete, e tocá-la é o trabalho dele. Mas, no contexto da música pop, ouvimos dizer muitas vezes que a banda tal fez uma cover de certa música. E ouvimos dizer isso porque, na música pop, esse reencontro do papel do intérprete é tão pouco habitual que até temos que falar estrangeiro e tudo. Convém referir também que a maioria das versões que eu ouço que grupos pop fazem de canções de outros grupos são tão desinspiradas e desprovidas de interesse que não se compreende porque raio as fizeram. Voltando ao paralelo entre música pop e música erudita, creio que ele pode ser estabelecido em vários outros pontos que não é necessário, para aquilo que diz respeito a este artigo, estar a descrever. Parece-me que são dois tipos de música de certa forma semelhantes, não na prática, mas no espírito. Mas nem em tudo. E uma destas excepções, uma das coisas em que não são nada semelhantes, é que a pop se orienta por aquilo que tem sido chamado o intuito comercial, enquanto a tradição da música erudita segue o seu caminho radicalmente oposto. E nada tenho a dizer contra a pop nesse sentido. Na verdade, parece-me que há tanta gente a tentar vanguardismos sem sentido e a inovação pela pura inovação que haver quem tenha a intenção oposta será, se não saudável, pelo menos não mais criticável. O meu problema com a pop também não é a quantidade de canções idiotas e música horrivel. Isto também me parece relativamente normal e não se trata sequer de um fenómeno específico da música. Provavelmente, o número de vendas das revistas côr de rosa também ultrapassa Saramago. O meu problema é que se formou à volta da música pop uma cultura que só posso classificar como um elitismo completamente paradoxal. Vou usar o exemplo dos cantores para ilustrar o que quero dizer. Os cantores são, geralmente, apreciados, na pop, por referência exclusiva a algumas qualidades técnicas, como a capacidade de berrar notas agudas, um vibrato mais ou menos habilidoso, o uso de ornamentação melismática, que se pretende soulful mas que, na maioria dos casos, é simplesmente pirosa, e por aí fora. Estas coisas são apreciadas pelos fãs porque eles apercebem-se que, se tentarem fazer o mesmo, não conseguem. Mas coisas como a colocação ritmica, a expressividade, a originalidade, a criatividade, todas essas coisas passam-lhes ao lado. Suponho que, com este critério, a Billie Holiday, que deve ter sido a maior cantora do século XX, seja considerada a pior cantora do mundo. A pop, no seu melhor, deu-nos alguns dos melhores compositores de canções, letristas, cantores, arranjadores e músicos dos mais variados tipos de todos os tempos. Mas assistimos, na maior parte das vezes, ao que este estilo tem de pior. E sinto, embora não tenha a certeza até que ponto este poderá ser um sentimento idiota, que o que este estilo tinha de pior há algumas décadas atrás não era tão mau quanto o que tem de pior agora, porque pelo menos soava tudo mais genuino. Para além de que a música era, frequentemente, mais um grito político e de revolta cultural que puramente música. Descubro muitas vezes, mesmo nas coisas más da música desses tempos, um certo encanto de artesanato. As coisas más de hoje soam-me só a decadência. Isto não é nenhum arroubo de nostalgia, até porque não vivi nessa altura, mas é um prelúdio antes de lançar um apelo que se aplica à esmagadora maioria dos fãs da pop. Esse apelo é que deixem de ser velhinhos. A música pop é, quase sempre, a coisa mais conservadora que é possível conceber. É um mundo de melodias simples, de ritmos comuns. Não vou empregar o lugar comum e falar em sucessões básicas de acordes porque, na verdade, creio que é um estereótipo injusto, e que a pop tende a ser bem mais interessante harmonicamente que noutros aspectos. Não me entendam mal, não é que alguma coisa, só por ser conservadora, tenha algum problema. Mas, quando vejo quase tudo o que é novo a nascer já gasto e decrépito, tenho que chegar à conclusão que falta algum espírito de aventura. E, para concluir, tenho que pedir para não defenderem o indefensável. Sobretudo os criticos e outras pessoas que têm a obrigação de saberem do que estão a falar. Tentem vender o que quiserem mas não façam de conta, com o argumento de que nas artes tudo é muito subjectivo, que clichês, coisas banais, e coisas simplesmente idiotas, não o são. O mau gosto é perdoável. Eu, se calhar, também tenho mau gosto, sei lá. Mas alguns tipos de técnicas sofistas são muito mais difíceis de engolir. Estas são algumas opiniões que, a mim, me parecem bastante pacíficas e razoáveis. Como, no entanto, encontro muitas vezes desacordo entre amigos que mas ouvem, pensei que poderiam ser um tema válido para postar neste blog e pôr à vossa consideração.


Hermano Moura

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