Estimado Extra-Terrestre,
Se está a ler estas linhas é porque a espécie, à qual pertenço sem grande entusiasmo, que outrora habitou este planeta, se encontra extinta, como era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, viesse a acontecer, tal como aconteceu a todas as que existiram, a todas as que existem no momento em que escrevo, e a todas as que existirão, assim nos ensina a ciência. Consciente que chegaria o dia em que exploradores de outros planetas viriam a descobrir as ruínas da nossa civilização, dediquei-me a escrever-lhe estas linhas, não em papel, que tão facilmente se perde, se queima, se gasta e se destrói, mas em minúsculos pixels e bits de informação, que resistem obstinadamente à intempérie e ao esquecimento, como o comprova o desespero de tantas celebridades e adolescentes sem bom senso. Portanto, deixo esta mensagem para si, caro alienígena, que chegou ao nosso pobre velho planeta azul, tão pequenino que por pouco não o via, mais especificamente a esta faixa de costa marítima a que um dia chamámos Portugal, tão estreita que por pouco a sua nave espacial não aterrava no oceano, para que, quando vier a desenterrar as nossas cidades, desempoeirar os vestígios do nosso quotidiano, investigar os cadáveres fossilizados das nossas paixões, possa entender um pouco melhor a nossa cultura e as nossas artes.
Se fizer algumas escavações perto deste local onde lhe escrevo, na outra margem do rio que provavelmente já não existe, encontrará uma grande estrutura de metal, que não é um símbolo fálico destinado aos nossos rituais ancestrais de acasalamento e fertilidade, mas aquilo que designamos por antena emissora de televisão. Valerá a pena desenterrar as gravações que conseguir, para ficar com uma ideia das coisas que gostamos de ver, das quais passo a fazer um resumo:
- Telejornais: uma outra forma de telenovelas, estes são programas que outrora tiveram o objectivo de informar o público.
- Reality Shows: estes são programas em que nos é dada a oportunidade de observar pessoas sem carisma nas suas vidas quotidianas e conversas banais. Parece-me que se atingiu recentemente um novo patamar com este tipo de programas, quando surgiu um que consiste num concurso de culinária, inteiramente baseado no teste da prova dos alimentos feitos pelos concorrentes, embora a nossa tecnologia, infelizmente, ainda não permita a transmissão da sensação de paladar pela televisão. Ou seja, é um pouco como ver um programa sobre morcegos a avaliarem musica feita unicamente com ultra-sons.
- Programas apresentados pela Bárbara Guimarães: a Bárbara é dois dos maiores vultos da nossa televisão.
- Televendas e concursos tipo "Quem Quer Ganha": alguns dos programas mais interessantes e eruditos da nossa programação, aconselho o seu visionamento atento.
Também não muito longe daqui poderá desenterrar as ruínas da nossa biblioteca municipal. Na nossa literatura, produziu-se um fenómeno curioso quando os adultos passaram de incentivar as crianças a ler a roubarem-lhes os livros para os lerem eles. Afinal, quando eles diziam que as crianças deviam ler mais, o que queriam mesmo era que houvesse mais livros para crianças publicados. Isto não é nenhuma crítica aos livros em si, até porque adorei os livros da série Harry Potter, e não posso opinar sobre os livros Twilight porque nunca os li, mas não deixa de ser um fenómeno interessante. Claro que também há literatura para adultos, como a Margarida Rebelo Pinto, mas, uma vez, li algumas páginas dela, e depois enfiei uma faca no fígado, porque, se vou ser torturado daquela maneira, prefiro fazê-lo como um homem a sério.
Infelizmente, a pintura é um tema sobre o qual não estou minimamente informado e não me interesso muito, pelo que não posso adiantar grande coisa ao meu estimado explorador interplanetário. No entanto, por aquilo que apanho do que me rodeia, creio que não erro muito se disser que os pintores temem de tal forma a beleza clássica, e estão tão obcecados com serem vanguardistas, que há anos que se entretêm a pintar as coisas mais destemidas e estranhas que conseguem imaginar, para poderem ser intelectuais e modernos. Creio que o público em geral de não-entendidos tem, como eu, a sensação, talvez não muito injusta, de que, se Miguel Ângelo ressuscitasse, e pintasse alguma coisa, seria ridicularizado e humilhado pelos críticos e pelos outros pintores até se aninhar em posição fetal debaixo de uma cama.
Na música também se produziu esse fenómeno, por exemplo em peças para aparelhos de rádio. A ideia destes músicos é que, se fizerem algo que ninguém consiga compreender, vão ser génios incompreendidos. Contudo, na música, isto adquiriu uma expressão menor, e o fenómeno mais relevante é precisamente o oposto. Boa parte da musica actual, longe de ser feita para pessoas com a pretensão de serem intelectuais, parece antes feita para quem quer parecer-se com alguém que sofreu uma lobotomia. Aliás, em muitos casos, não é sequer música, porque não é feita por músicos. É feita por produtores. É fácil de fazer, e vende imensamente. Seria como os hamburgers, se estes fossem feitos especificamente para pessoas às quais tivessem retirado cirugicamente o cérebro e posto em lugar dele o cérebro de um chimpanzé. E, por azar, se tratasse de um chimpanzé não muito inteligente.
Falta-me falar sobre o cinema. Mas aquilo que teria a dizer sobre os filmes é tão semelhante ao que já disse noutros pontos deste artigo, que não sei se vale a pena. A máquina de fazer dinheiro estende os tentáculos e apodera-se de tudo. O que acontece é que, entre o dinheiro e a arte, o dinheiro é claramente a via mais directa para ter sexo com prostitutas minimamente aceitáveis. E o dinheiro, ao contrário da arte, constrói impérios, e está do lado de quem tem o poder. Assim, não deveria ser surpresa, por exemplo, que sejam os produtores a criarem, em boa parte, os filmes, tal como acontece com a música. Se um aspirante a escritor escrever um guião genial e o enviar para Hollywood, e tiver a sorte dos produtores ficarem tão fascinados com a qualidade do trabalho que decidam contratá-lo, aquilo que acontece é arranjarem-lhe um lugar a escrever as partes de diálogo do filme que eles querem fazer, que está estudado para vender o mais possível, mas não necessariamente para não ser intragável. Talvez transpareça demasiadamente destas linhas que o papel dos produtores e corporações na minha concepção mental do mundo é semelhante à que os judeus tinham na concepção do Hitler. Talvez eu esteja a ser demasiado agressivo. Mas eles também podiam ajudar e resolverem parar de serem seres sub-humanos e sem alma que conspurcam tudo aquilo em que tocam. Os produtores, admitirei, são importantes e, sem eles, talvez estivessemos a chafurdar num tipo de lama diferente mas não forçosamente melhor. Só que devia haver um certo equilíbrio nas coisas. E sempre que tenho um vislumbre do poder que eles têm, da influência doentia que têm sobre toda a nossa cultura, e da confiança ilimitada que depositam na bronquice do cidadão comum, sinto que devíamos lutar conforme pudermos contra o estado actual das coisas.
Não me alongo mais. Vou despachar-me porque quero ir ouvir um cd novo, que comprei. Na publicidade, o cantor aparece rodeado de mulheres em bikini, e disseram-me que ganhou um concurso de televisão, portanto, tenho a certeza que a música só pode ser fantástica. E, a seguir, vou ao cinema ver um filme. Enfim, caro viajante de outro planeta, é este o inventário da nossa civilização que lhe deixo para que possa ser feita justiça à nossa memória quando da nossa existência apenas restar cinza e pó e nada, e, porventura, uma lágrima a escorrer na face da lua que, olhando tristemente um mundo sem humanos, talvez pense de si para si, à semelhança das mães que vêem os filhos irem presos, que nós, lá no fundo, não éramos maus rapazes.
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