E pur non si muovono


Há alguns dias atrás, estive a ler uma notícia sobre um clérigo irlandês acusado de excomunhão por ter sugerido que, no futuro, poderia vir a ser permitida a ordenação de mulheres (http://www.independent.ie/national-news/irish-cleric-threatened-with-excommunication-for-suggesting-women-priests-a-possibility-3358147.html). Por inofensivo que o episódio possa ser comparativamente à restante história da Igreja Católica, não pude evitar que me viessem à lembrança as palavras do Papa Bento XVI quando, num discurso, Sua Santidade apresentou as suas desculpas em nome da instituição pela violência e abusos praticados ao longo dos séculos. É que, estão a ver, compreende-se por qualquer definição historicamente informada da palavra “religião” que esta outra palavra, excomunhão, tem um significado muito preciso e muito feio. Do conceito costumeiramente associado ao pedido de desculpas, que é o de arrependimento, e refiro-me, fique claro, a um arrependimento real e produtivo, a uma verdadeira abjuração de erros passados, não se ouviu nem sílaba, nem ninguém ousaria imaginar que a tanto chegasse o sucessor de São Pedro e líder da Santa Madre Igreja, para a qual a palavra “arrependimento” é a mais importante das conhecidas pela raça humana conquanto que, evidentemente, aplicada à parte dessa mesma raça que não foi abençoada pela graça directa da divindade. A quem possa sugerir que a relativa equivalência entre as duas noções trás à luz mais as minhas más vontades próprias que as incúrias alheias, poderia fazer lembrar que há entre elas não só abismos de pronunciação, mas ocasionalmente, e dependendo do contexto, muralhas de significado, assim se verificando uma vez mais, por este como por outros métodos, como são inteligentes as palavras e burras as pessoas. Nem menos diriam os próprios portadores do sacerdócio, os quais, tanto quanto me lembro, nunca me ensinaram a ajoelhar no altar com desculpas, mas com súplicas de penitência, e cujo líder benemérito não consigo imaginar a dirigir-se ao fiel rebanho com estas últimas, mas apenas e só com as primeiras. Para quem duvide deste ponto, Sua Santidade deixou claro que se recusava a condenar os seus antecessores. Como entendo que essas desculpas visavam toda a humanidade, e não as vítimas reais das atrocidades mais notórias, uma vez que estas estão já longe de palavras que lhes possam valer, sinto-me no direito de lhes responder. Pela minha pequena parte, e não posso falar por mais ninguém, não as aceito. E quero explicar porque é que estas não me parecem associadas a uma autêntica penitência, não por prazer em dar notícias que toda a gente já conhece, mas pelo prazer da fundamentação, que é, afinal, e aqui sim as semelhanças fonéticas são enganadoras, a concorrente oposta e antitética do fundamentalismo. Em primeiro lugar, tanto quanto é do meu conhecimento, a doutrina da infalibilidade papal, porquanto ditada pela graça divina, não foi, nem poderia ser, alterada. E assim sendo, não vejo sentido em pedir desculpas por ter razão. Em segundo lugar, tendo a sorte de viver numa época e de num lugar comparativamente livres das garras espirituais e do fogo sagrado, e também das garras de metal e fogo das tochas, com que estas pessoas nos conduziam, e nessa medida capaz de ver claramente e sem grilhetas que não as que me impõem as abundantes limitações da minha mente e do meu espírito, sendo que as da carne não me incomodam tanto, para além de que já se obcecam suficientemente com elas os membros da Igreja por mim, tenho que reconhecer que, conforme os acontecimentos não se cansam de demonstrar, o nosso grande poeta se enganou, e os tempos mudam mas as vontades nem por isso. Basta para confirmar esta última realidade verificar que a Igreja continua a condenar e a desencorajar o uso de preservativos em zonas do mundo devastadas pela Sida, sendo neste momento um dos obstáculos às medidas de prevenção que se têm tentado tomar nessas regiões. Por último, as palavras de Sua Santidade fazem-me lembrar de uma coisa muito importante. É que as desculpas são devidas, e eles sabem-no. Quando eles pensam nas barbaridades cometidas, não pensam na vileza e ignorância daqueles padres antigos, nem em quanto a instituição que representam evoluiu. Eles pensam “Ups”. Eles sabem que são os mesmos. Eles sabem o que está entranhado na pedra esmorecida dos santos nas igrejas e nos Pais Nossos de cada domingo. E que não se tratam de produtos de outros tempos, ou de desvios desafortunados de doutrinas transviadas, mas de consequências directas e naturais de tudo aquilo que eles representam. E por isso ainda não ouvi desculpas que cheguem. Mas eu serei mais magnânimo que o seu deus misericordioso. Não lhes exijo penitências nem lhes rogo pragas de inferno. Não lhes desejo, aliás, mais do que aquilo que eles próprios afirmam devotamente desejar, quando garantem que abandonamos este pobre invólucro terreno para ascendermos à companhia do progenitor eterno na paz do céu. Por mim, podem ir indo.

Hermano Moura