Assinalamos recentemente a passagem de dez anos desde os eventos de onze de Setembro de 2001. Quero que as minhas primeiras palavras ao começar este artigo sejam, para que não possa ser mal interpretado no que escreverei de seguida, de pesar profundo pelas vidas perdidas e de condolências sinceras aos que as amavam. Entretanto, este artigo não é exclusivamente uma expressão dos meus pêsames aos que sofreram na tragédia. Tenho que manifestar também o meu assombro por, apesar de todas as vezes que se falou no onze de Setembro desde então, nunca ter, em todos estes anos, ouvido, que me recorde, uma discussão real sobre as razões que levaram aos atentados. Creio que isto acontece devido à manipulação da imprensa e às pessoas atribuírem os ataques aos actos psicóticos de fundamentalistas religiosos e maníacos homicidas. Não há duvidas que o fundamentalismo religioso desempenha um papel importante. No entanto, se nos dermos ao trabalho de ouvir integralmente um dos famosos discursos de OsamaBin Laden, verificamos que ele faz apenas duas referências às suas crenças religiosas, uma no início, que é a longa oração que faz antes de começar o discurso, e outra no fim, afirmando a sua convicção na lei de Alá como a melhor das leis e como o melhor caminho para o povo americano. No resto do discurso, em vez de Alá e de devaneios lunáticos homicidas, fala sobre os ataques americanos à independência dos povos do médio oriente, expressa a sua admiração por Kennedy e analisa a corrupção do sistema politico americano. E, é curioso, quando vejo na televisão as imagens de muçulmanos a pegar fogo à bandeira americana e a pontapear a fotografia do presidente dos Estados Unidos, nunca ouço as palavras "cristão" ou “infiél”. Ouço sempre "assassino". Isso leva-nos, ou devia levar-nos, forçosamente, a pensar nas causas de todo o ódio. E deviamo-nos lembrar, porque é importante que nos lembremos, de coisas que são do conhecimento público relativamente à intervenção americana na política do médio oriente, tais como:
- Para debilitar a União Soviética, na altura da guerra fria, os EUA tentaram incitar uma guerra entre esta e o Afeganistão. Para esse fim, forneceram armas aos extremistas da facção de Hekmatyar, o que tornou impossível a formação de um governo estável na região.
- Os EUA apoiaram Israel na chacina de libaneses a ponto de impedir as Nações Unidas de forçar um cessar fogo israelita, embora o Líbano contasse já milhares de mortos. Depois, com o apoio dos EUA, um regime não democrático tomou conta do poder no Líbano. Quando os populares se revoltaram, os EUA bombardearam aldeias e vários pontos que consideraram focos da revolta.
- No Irão, em 1953, os EUA organizaram um golpe para tirar do poder o então primeiro ministro Mohammad Mosaddegh, que tinha sido eleito democraticamente, e colocaram em seu lugar o Xá, um ditador tirânico. Este Xá servia-se de uma policia de estado treinada, ela própria, pelos EUA.
- Quando o Iraque tentou invadir o Kuwait, as forças americanas da Guerra do Golfo provocaram estragos e massacres tão desproporcionados e excessivos, inclusivamente civis, que mesmo os oponentes de Saddam Hussein tomaram posição contra os EUA.
- Os Estados Unidos apoiaram o Iraque e Saddam Hussein por ocasião da invasão do Irão, impedindo as Nações Unidas de actuarem e fornecendo Antrax e armas químicas ao Iraque.
- Os EUA forneceram armas a várias nações islâmicas em conflito, muitas vezes a ambas as partes dos conflitos, alimentando assim as guerras.
- Os EUA apoiaram e realizaram transacções comerciais com governos autocráticos e tirânicos que oprimiam os povos no médio oriente
- No Sudão, os EUA bombardearam uma fábrica de produtos médicos que fornecia cerca de metade da produção nacional de medicamentos sudanesa. Milhares de pessoas morreram devido à escassez de coisas como vacinas e antibióticos. Os Estados Unidos alegaram, acredita-se que falsamente, que se tratava de uma fábrica de produtos químicos. Não existe certeza absoluta se era ou não porque os Estados Unidos impediram a investigação das Nações Unidas
- Os EUA incitaram e encorajaram conflitos entre estados islâmicos, para evitar que estes países se pudessem vir a unir
- Os EUA apoiaram e treinaram a Al-Qaeda quando esta servia o seu propósito de combater a União Soviética. Foi quando os Estados Unidos tomaram o lugar destes últimos como força invasora que principiou o conflito.
- As forças militares americanas classificadas como ajuda internacional nunca trouxeram até à data melhorias significativas nas regiões que supostamente estariam a ajudar.
- Na primeira metade do século XX, eram os países europeus a colonizar os países islâmicos. Esta colonização originou repercussões até aos dias de hoje. No entanto, nesta altura, os povos do médio oriente não tinham nada contra os EUA, porque a opressão vinha da Europa.
- Em suma, como diz Gwynne Dyer: “O ocidente criou o médio oriente actual, dos seus regimes podres às suas linhas fronteiriças ridículas, e fê-lo num completo desrespeito pelos desejos das populações locais. É realmente um problema que a maioria dos governos Àrabes sejam autocracias corruptas que geram o ódio e o desespero nos seus próprios cidadãos, o que por sua vez alimenta o terrorismo contra o ocidente, mas foi o ocidente que criou o problema.”
Estes são apenas alguns dos factos conhecidos publicamente, aos quais haveria a acrescentar ainda outros, e também, concerteza, coisas que não são conhecidas e que ocorreram e ocorrem na completa penumbra. Ou seja, o que é surpreendente não é que o onze de Setembro tenha acontecido. A mim o que me admira é como não aconteceram mais. Sinceramente, não sei quantas destas coisas era preciso fazerem-me até eu me tornar terrorista. Não sei quantas vezes era preciso vir uma potência estrangeira depôr um politico que eu e os outros cidadãos tivéssemos elegido para pôr no seu lugar um ditador sanguinário, ou quantos filhos meus era preciso matarem por motivos económicos, até eu me tornar insensível aos civis inocentes e fazer o que pudesse.
E, portanto, eu sei do extremismo religioso. Mas, como dizia Umberto Eco no Nome da Rosa, quer se aja em nome do céu de Alá ou em nome do paraíso de Deus, estas coisas acontecem porque existe o inferno aqui na Terra. Retratam os radicais islâmicos a encomendarem a alma a Alá antes de se matarem, como que a sublinharem a raiz do problema. Mas quantos de nós, se nos fossemos suicidar, não encomendaríamos a alma ao nosso Deus, sem ser preciso sermos fanáticos religiosos? Sim, toda a gente sabe dos extremistas religiosos. Mas ouçam, eles nunca andaram a chatear ninguém até lhes terem sido dados motivos para o serem.
Quero concluir como comecei, manifestando os meus sentimentos pelas vitimas da tragédia horrível do onze de Setembro. O meu coração chora por eles. Mas chora também pelos milhares incontáveis de muçulmanos mortos pelos ataques terroristas do governo americano, embora estes últimos não costumem ser chamados assim.
De forma que, quando as imagens na televisão mostram as ruínas do World Trade Center e os cemitérios de vitimas inumeráveis, para me relembrarem da malvadez e monstruosidade dos terroristas, a mim relembram-me uma coisa diferente. Que só há, realmente, um traseiro em que a aguarrás dói: o nosso.
Hermano Moura