Quando eu era uma criança, o meu sitio preferido no mundo inteiro era o clube de xadrez. Adorava o jogo, e ia lá jogar todos os dias, depois da escola. Entrava-se por uma portinha, passava-se a loja de pasteis de chaves (às vezes, comia-se um pastel), subiam-se uns degraus, desembocava-se numa sala antiga com filas de mesas e tabuleiros e alguns velhotes debruçados sobre os respectivos jogos. Quando comecei a frequentar o sitio, alguns dos velhotes, cheios de boas intenções, tentaram ensinar-me e ajudar-me a melhorar. Foi em vão, porque quando tentavam dizer-me alguma coisa do género “tens que tentar dominar o centro do tabuleiro”, eu ficava curioso: “porquê?”, e eles perdiam a paciência. Creio que tomavam como insolência aquilo que era genuína curiosidade da minha parte. Por outro lado, julgo que eu era demasiado novo para entender a generosidade e boa vontade com que eles tentavam ensinar-me, e que devia era ficar calado e ouvir. Sempre tive esse problema: gosto de saber coisas, mas nunca gostei que me ensinassem nada (continuo a ser assim, estúpido). Foi por essa altura que conheci e comecei a jogar com o senhor Carvalho. O senhor Carvalho, que, a não ser que os pais se tivessem lembrado de o baptizar com o nome próprio de Senhor, devia ter outros nomes que nunca conheci, era um cavalheiro benevolente, de pele manchada pela idade, que esfregava a careca pensativamente quando se preparava para me arruinar a barreira de peões cuidadosamente construída. O senhor Carvalho, como professor, tinha uma paciência de ouro: nunca me tentava ensinar nada, mas deixava-me aprender. Em vez de me explicar porque era importante dominar o centro do tabuleiro, deixava-me fazer jogadas parvas e ver por mim próprio o resultado. Uma vez, para me ensinar como se dava cheque-mate com cavalo e bispo, pôs um bispo e um cavalo e os dois reis no tabuleiro e desafiou-me a pensar. Não se limitou a descrever-me a teoria ou a indicar-me num livro os passos necessários. Pensei durante séculos até me sair fumo pelas orelhas e, finalmente, lá consegui. Ora, isso significa que eu aprendi
realmente como se dava mate com bispo e cavalo, e porque era importante dominar o centro do tabuleiro. O conhecimento que adquiri, muito ou pouco, adquiri-o com pleno direito a ele. Não memorizei simplesmente o conhecimento de pessoas mais inteligentes que eu sem o entender bem. Não fiquei apenas a saber como se fazia, mas
porque se fazia assim. Há uma diferença, às vezes subtil, mas incrivelmente fundamental, entre o conhecimento superficial que, muito frequentemente, é ensinado nas nossas escolas e universidades, e este tipo de conhecimento verdadeiro sobre as coisas, seja no que for. Isto para além de ter aprendido e desfrutado o verdadeiro sentido do jogo, que não é decorar teoria mumificada num livro, mas tentar usar o cérebro. Ou seja, o senhor Carvalho era um grande Professor. Eu aceitava-lhe sempre os desafios, ano após ano, jogo após jogo, e tenho, em retrospectiva, que auto-admirar um pouco a minha persistência. As partidas acabavam, ingloriamente, com as minhas precauções defensivas frustradas por alguma armadilha táctica que eu não tinha entrevisto, alguma peça menor a deambular pelo tabuleiro num lugar ridículo, a minha dama prestes a sofrer algum destino cruel. Era nesta altura que o senhor Carvalho me piscava o olho, sorria sardonicamente e dizia “vamos dar esta como empatada, meu amigo?”. O raio do velho. Lembro-me de uma ocasião em que, depois de olhar para o tabuleiro a pensar durante algum tempo, se virou para mim a sorrir: “o meu jovem amigo está a preparar-me uma armadilha bem matreira”. Eu, embora não visse armadilha nenhuma, fiz um ar modesto de quem tinha sido desmascarado. Passado umas jogadas, lá estava o meu rei apanhado nalguma Revolução Francesa de peões maldosos e bispos pouco cristãos, e o senhor Carvalho a propôr-me o empate. Entretanto, porque o tempo nunca fica no mesmo lugar e nós também não, fui deixando de poder aparecer por lá e perdi o hábito de jogar. Retomei, há uns tempos, o gosto pelo jogo, e recomecei a praticar, contra o computador, e na internet. Mas não é a mesma coisa. O pessoal da internet, quando me apanha com as defesas arruinadas, os planos aniquilados, a dama a balouçar à vertigem da inexistência, nunca me sorri a propôr o empate. Portanto, quando me achei desenferrujado e em boa forma, lembrei-me de visitar o clube, onde não entrava há anos, ver se o meu amigo continuava por lá, para lhe propôr umas partidas em honra aos velhos tempos. Foi quando andava a pensar nisso que soube, por telefone. O raio do velho tivera a ousadia de sofrer uma paragem cardíaca. Para mim, fez de propósito. Deve ter sabido da minha recente boa forma, e preferiu não ter que me dar a desforra. Perdeu por desistência, o que me consola muito pouco: dava tudo para poder voltar a jogar com ele. Aliás, quando me ponho a pensar nisso, acho que nem precisava de lhe ganhar para me sentir satisfeito: bastava-me o empate.
Hermano Moura